O meu nome é um
mistério como o fundo das águas do Pacifico ou como a história verídica do
Titanic ou como… como um coração de uma mulher. O meu nome é um mistério e não
interessa.
Esta história não
é sobre mim. É sobre ela. E é ela
quem interessa.
Ela é minha
homónima e minha antónima e tudo o que está no meio.
Os seus sonhos
são profundos como as marcas que as suas unhas pontiagudas e quase letais
cravam na sua pele macia e branquinha, como a neve de Dezembro nas ruas de uma
qualquer cidade gelada. Talvez Moscovo, talvez Estocolmo… talvez, talvez. Quem
sabe o que guardam os seus sonhos e os seus olhares singelos e frágeis, e o seu
sorriso que está preso apenas por linhas de alinhavar, tão fracas, tão fraco que se
cair, cai. Isto é redundância minha, eu sei. O seu sorriso baterá a barreira do
som e despedaçar-se-á como mil pedacinhos de vidro nos mosaicos brancos da sua
cozinha… ou da sua casa de banho. Eu sei, porque eu vi.
O seu sorriso é
frágil, é ágil, é mentira.
Ela diz palavras
de amor, palavras de terror e quando fecha os seus olhos gigantes, como
holofotes virados para o chão de tão tristes que estão… quando fecha os seus
holofotes verde-esmeralda veem-se mil traços, laivos de sangue escorrendo da
sua pele. E ela nem nota, ela nem sente… Ela só vê vermelho, e mais vermelho e
talvez um pouco de vermelho acastanhado porque quando o sangue é em demasia
tende-se a perder um pouco a noção da sua cor e ele coagula e junta-se ao
sorriso que ainda ali está, estatelado no chão.
Uma lágrima, duas
lágrimas. Um suspiro. Vem ai alguém e ela não pode mostrar, não pode sentir,
não pode sorrir, não pode, não pode, não pode, não pode desistir.
E então lá anda
ela, tão quieta, tão singela, sempre de top verde e de jeans bem apertadinhas,
fingindo ser o sol do dia, la creme de la
creme, o morango com chantilly. Ela é assim durante o dia, escutem-me bem.
Os seus olhos grandes e profundos e sentidos e o seu sorriso de plástico
(porque o de vidro, o verdadeiro, despedaçou-se, perdeu-se e então o plástico é
a melhor das alternativas) e os seus saltos altos que a fazem sentir-se altiva
e rainha. Ela merece sentir-se rainha, porque ela é tão linda e frágil.
Pobrezinha.
E agora lá vai
ela. Cuidado, cuidado… vejam como ela desfila pelo Bairro Alto, quando as horas
do seu relógio de pulso avançam para o número 11. Lá vai ela, vejam-na bem,
sempre de copo na mão e cigarro entre os lábios carnudos, pintados de
vermelho… ou cherry, que é mais chique. Ela quer adiar a noite porque a noite
dela só começa quando chega a casa e tira o seu vestido negro como o seu humor,
e fica apenas com aquela lingerie rendilhada que comprou num acto de raiva e loucura e impulso e desejo, e prostra-se
frente ao espelho e lá ela vê tudo o que poderia ter sido e não é. Tudo o que
os outros não a deixam ser, pensa ela.
E culpa a irmã e
culpa a mãe e culpa o mundo porque a censuram e a derrubam e a odeiam. Mas não o culpa a ele. Porque ele é ele. Ou talvez porque ele seja Ele. Ela
às vezes entoa as coisas de uma maneira que me levam a crer que ele é sempre
Ele, e não apenas um ele.
Há algo nos
homens, já reparei, tão misterioso como o meu nome e como o nome dela (porque
somos homónimas mas antónimas) e como o Titanic e o Pacifico. Os homens. Os
homens são um mistério ou como ela diria “a fava no bolo Rei”.
Ela diz que antes
era tudo bom. Que ela era completa e não apenas uma “fatia da tarde de maçã
desta vida” porque para ela as maçãs são o melhor… aí somos sinónimas e não
antónimas como em tantas outras coisas, tais como o humor e o calor e o sabor
de viver. Somos sinónimas na maçã e homónimas de nome e acho que chega de
parecenças.
Ela diz que quando ele se foi tudo mudou. Ele… Ele… sei o seu nome e a sua morada é
incerta… sei que derrete corações e incendeia paixões e acalenta sonhos de
romances impossíveis. Diz que é cantor… ou “popstar”. Ela chama-lhe popstar poque sempre se encantou com estrangeirismo. Ela diz, ela diz, ela canta, até, por vezes. Ou cantava porque agora
ela já não é ela.
Naquela noite ela
chegou a casa e estava tudo calmo, tão tranquilo. A mãe dormia e a irmã cantava
fado numa das tasquinhas de Alfama, que é assim que ganha a vida. E ela, a
minha homónima mas antónima e por vezes sinónima, fez a sua rotina. Já passava
das duas da madrugada, e ela dizia que a noite era uma criança mas ninguém a
quis ver crescer… ela gostava sempre de ver a noite a tornar-se adulta e depois
a morrer com o nascer do Sol. Penso que era nisso que o encanto dela consistia…
no nascer do Sol, porque ela nunca saia do Bairro sem haver pontada de luz
natural.
Mas nessa noite
ninguém quis e por isso juntámo-nos ao grupo de cobardes que a fazem infeliz e
lá fomos, cada um para o seu canto, cada um com o seu encanto e ela só. E por
isso chegou a casa com o seu vestidinho preto da Zara e os seus amados Jeffrey
Campbell e prostrou-se, como sempre, frente ao espelho de corpo inteiro que tem
no quarto. E ai, ainda antes de fazer deslizar os seus dedos longos e frios
pelo fecho dourado no lado direito do seu corpo esbelto e esguio, ela chorou e
as suas mãos enrolaram-se em volta do cabelo castanho caramelo que ela estica todas as manhãs.
Afinal a culpa
podia ser dele, porque a mãe batia-lhe e a irmã insultava-a mas ele roubou-a…
desproviu-a de um coração, que não se nega a ninguém. Mas agora ela estava sem o
seu coração e ele tinha dois na palma da sua mão (ou um na palma da sua mão e
outro a palpitar no seu peito). E que jeito tem isso, pergunto eu? Que jeito?
Que imperfeito, malfeito, invejoso ser faria isso a uma rapariguinha, que vive
a noite como se fosse dia e vê-a morrer como se fosse algo banal, normal, usual, e que anda sempre aperaltada, exaltada, com o seu mini vestido e
os seus lábios cor de cherry e que quando anda balança a anca e o seu cabelo
como se fosse um vai e vem? Ele vai e ele vem… o cabelo, digo, eu. Porque Ele
foi e não veio e portanto lá está ela, ajoelhada no seu quartinho, frente ao
espelho gigante e desta vez ela não se despe.
Não, ela só
chora. E depois faz o que mais gosta, o que mais detesta, o que mais a
conforta, o que mais a revolta com aquele pequeno pedaço de gillette que mantém escondido num espaço recôndito e sagrado do roupeiro.
Porque ela só vê
laivos vermelhos, não se esqueçam. Ela gosta do contraste que fazem na sua pele
de Branca de Neve. Mas por vezes até os melhores profissionais cometem erros e
este corte foi muito fundo.
E agora os laivos
não são vermelhos, são castanhos. Porque já vos disse e já lhe disse: quando o
sangue é demais, perdemos a noção da sua cor. E apesar de ser tudo vermelho, ela só vê branco... dizem que é a vida a passar-nos à frente mas eu não sei. Talvez seja simplesmente o fim da linha.
E por isso lá vai
ela, com o seu vestidinho preto e os seus Jeffrey Campbell e o seu cigarro
entre os lábios vermelho e o seu cabelo a baloiçar… vejam-na, olhem para ela
como nunca olharam porque a morte tem este dom: fazer-nos acordar. Não é isso
que acontece quando acaba a noite e começa o dia? Não acordamos?
E eu cá vou, à
procura dele.
Porque como vos
disse, ela é minha homónima, minha antónima e tudo o que está no meio.
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